Dos 17 países em que a Fundação Aga Khan (AKF) trabalha, aquele onde tem a maior presença é o Afeganistão. Emprega cerca de 1200 funcionários, 99% dos quais afegãos, incluindo o Presidente da AKF no Afeganistão, Dr. Najmuddin Najm. O Dr. Najmuddin trabalha com a AKF desde 2004, tendo começado como gestor de gabinete e chegado a presidente em 2019. A sua liderança e as suas raízes locais têm sido uma parte integrante da resposta da AKF à atual situação no Afeganistão. Falámos com ele para saber mais acerca da crise humanitária, da resposta da AKF e das suas esperanças para o futuro.
Dr. Najmuddin, poderia começar por descrever a atual situação humanitária no Afeganistão?
Como todos sabemos, o Afeganistão encontra-se numa situação muito difícil e complexa. Não é o resultado de um fenómeno isolado – existem razões históricas. Ao longo dos últimos anos, a situação socioeconómica global no Afeganistão tem vindo a agudizar-se, agravada por vários fatores.
Após o dia 15 de Agosto de 2021, as coisas mudaram drasticamente no país. Ainda que fosse expectável, as pessoas não estavam à espera de uma mudança tão grande e abrangente. Já tivemos uma situação humanitária de grande pressão, mas agora vivemos uma crise humanitária. De acordo com O Quadro Integrado de Segurança Alimentar (IPC), mais de 22 milhões de pessoas no Afeganistão estarão [em breve] numa situação de emergência – ou seja, cerca de 60% da população.
Quais são os principais desafios que os afegãos estão a enfrentar?
A segurança alimentar é uma questão fundamental. O acesso a serviços financeiros é também um grande desafio, assim como o acesso a serviços públicos. Os meios de subsistência estão sob pressão e as pessoas estão com dificuldades em encontrar formas de superar os problemas económicos com que se deparam. Isto tem levado ao aumento da pobreza tanto em zonas rurais como urbanas.
Quando vamos para o terreno e falamos com as pessoas, percebemos que os meios de subsistência das populações se reduziram drasticamente ou desapareceram por completo. No passado, muitas pessoas estavam empregadas no sector público ou privado ou tinham migrado para países próximos, como o Irão e o Paquistão, para encontrar trabalho e enviar dinheiro para as suas famílias. Perante a situação atual, as opções de contratação são muito limitadas, e a pandemia da Covid-19 ainda veio agravar mais essa questão. Em Cabul e noutras grandes cidades, podemos observar claramente elementos de pobreza urbana com um número crescente de pessoas a pedir ajuda ou desesperadamente à procura de um trabalho diário. Também não podemos ignorar os fatores naturais, como as alterações climáticas, que também têm contribuído para esta situação. Temos tido uma pluviosidade anormalmente baixa nos últimos anos, algo que tem afetado a nossa economia baseada na agricultura.
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Que mais o preocupa na situação humanitária atual?
Sempre vivemos situações de incerteza e conseguimos ultrapassá-las, mas desta vez será necessário muito mais tempo e esforço para que as pessoas superem o medo e a desesperança. As mulheres, em particular, estão muito preocupadas com o que irá acontecer com elas e com os seus filhos no futuro. A situação no aeroporto de Cabul em Agosto foi um exemplo de como as pessoas estavam desesperadas para deixar o país. Na verdade, essa é outra preocupação que tenho: centenas de milhares de pessoas abandonaram o Afeganistão nos últimos seis meses e eram na sua maioria pessoas com formação. O país não se pode permitir uma tal perda de capital humano – ou a chamada “fuga de cérebros” – particularmente num momento [em que] são muito necessários.
Outra área preocupante são os constrangimentos financeiros. Perdemos muitas relações económicas, e o normal fluxo de capitais – seja ao nível dos negócios e comércio como da ajuda humanitária e desenvolvimento – tem-se tornado cada vez mais difícil de manter. Isto está a afetar os meios de subsistência de milhões de afegãos.
Como é que a AKF se adaptou à situação?
Quando o tema é a nossa capacidade de adaptação, eu destaco sempre a história da nossa presença. Trabalhamos no país desde 2003, e a Rede Aga Khan para o Desenvolvimento, no seu todo, desde 1996. Isto significa que os nossos compromissos, operações e a elaboração e implementação de programas têm levado sempre em conta o ambiente frágil e os problemas do Afeganistão. Temos conseguido permanecer operacionais e isso é algo que está bastante enraizado naquilo que temos feito ao longo das últimas duas décadas. Sempre trabalhámos ao nível local, criámos fortes relações com as comunidades e desenvolvemos um ambiente no qual os nossos programas não só são aceites pelas comunidades como pertencem a essas mesmas comunidades.
A nossa neutralidade e a qualidade e abrangência do nosso trabalho têm desempenhado um papel importante na nossa resiliência nesta fase, assim como a nossa capacidade de nos reorganizarmos perante uma situação de crise.
Como está a funcionar atualmente o trabalho da AKF no Afeganistão?
Na sequência do dia 15 de Agosto, nós reiniciámos as nossas operações e reorganizámos os nossos programas em vigor. Claro que existem limitações, mas tentámos manter-nos ativos em todas as áreas nas quais já estávamos a trabalhar. Isto inclui programas importantes nas áreas da saúde, educação e desenvolvimento da primeira infância, agricultura e segurança alimentar, adaptação às alterações climáticas, recuperação económica e desenvolvimento de infraestruturas.
Para além disso, acrescentámos uma resposta humanitária completa, através da qual pretendemos chegar a mais de 500 000 famílias, cerca de 3,5 milhões de pessoas. Atualmente, esta resposta inclui a entrega de pacotes de alimentos, bem como o apoio a atividades de comida por trabalho e dinheiro por trabalho. Estamos conscientes da importância da agricultura no país, por isso este trabalho também envolve o apoio ao desenvolvimento da pecuária e o fornecimento de recursos aos agricultores.
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Pode falar-nos um pouco acerca dos principais desafios que as ONG, como a AKF, têm enfrentado no apoio à população afegã neste período?
Em primeiro lugar, a entrada de fluxos financeiros no Afeganistão tem sido um grande desafio – garantir que os fundos chegam através de rotas seguras e legais.
Em segundo lugar, como referi anteriormente, com tantos afegãos instruídos a fugirem do país, as organizações internacionais têm de reinvestir no aumento da sua capacidade técnica e profissional.
Em terceiro lugar, aquele que tem sido um desafio particularmente difícil: utilizar o suporte da comunidade internacional no apoio ao Afeganistão; muitos querem concentrar-se no aspeto humanitário da situação. Ainda que seja muito importante, esta vertente por si só não tem em consideração os problemas crónicos que estão por trás da situação atual. A comunidade internacional tem de abordar as causas profundas para as questões atuais e garantir que as intervenções são relevantes e têm objetivos de longo prazo. Os investimentos têm de ser direcionados para a capacitação das sociedades e para a construção da resiliência. Estou certo de que se as populações recebessem um apoio adequado, encontrariam formas de lidar com os problemas atuais. Temos de olhar para as pessoas no Afeganistão como muito mais do que beneficiárias; são verdadeiros intervenientes e são uma parte importante da solução.
Que mais pode a comunidade internacional fazer pelo Afeganistão?
A resposta é muito simples: o Afeganistão precisa de atenção e compromisso. O povo afegão não se deve sentir excluído do mundo e do apoio internacional, e a comunidade internacional tem a responsabilidade de garantir que os afegãos se sentem parte da família mundial. Este sentimento de pertença tem de ser reforçado e isso só poderá ser alcançado através de um envolvimento continuado com os afegãos nos seus momentos mais difíceis. Embora uma pequena parte da população tenha deixado o país, milhões de pessoas vão ficar aqui no Afeganistão – temos de tranquilizar os afegãos de que estamos com eles.
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Que fatores lhe dão esperança na atual situação?
A resiliência das comunidades afegãs e a sua força. Temos visto estas populações a ultrapassar imensos desafios. Pessoalmente, já testemunhei situações semelhantes a esta muitas vezes no passado recente e as pessoas sempre conseguiram erguer-se nos seus próprios pés. Após cada período difícil, temo-los visto continuar a educar os seus filhos, criar sistemas de saúde, expandir o seu trabalho na agricultura, explorar opções de ligação com a região e o mundo inteiro. É isso que me dá esperança e me motiva a investir uma e outra vez no desenvolvimento do Afeganistão.
É importante lembrar de onde viemos – este não é o Afeganistão de há 30 ou 40 anos. Embora o espaço delas esteja atualmente limitado, temos uma sociedade de mulheres muito dinâmica e ativa. Existem milhões de raparigas e mulheres inteligentes a impulsionarem os serviços públicos do país, a gerirem empresas e a colaborarem em todos os sectores que a AKF apoia. Este potencial também me dá esperança.
Por fim, que aspeto da situação atual do Afeganistão considera que seria uma surpresa para as pessoas fora do país?
Elas ouvem muitas notícias negativas sobre o Afeganistão. Acham que colapsou tudo e que não há espaço para trabalhar. O que digo é que há muito potencial, ainda há esperança e temos de garantir um desenvolvimento com base nisso. Esta é uma mensagem importante que temos de transmitir ao mundo, porque as tendências políticas vão e vêm e passamos por tempos difíceis, mas o povo do Afeganistão está sempre aqui. O potencial e a capacidade para um futuro melhor existem, só precisamos de o viabilizar e apoiar.
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Um agradecimento a todos os doadores que apoiam o nosso trabalho no Afeganistão.